sexta-feira, 9 de junho de 2023

Pedaços de mim - Socorrista

A foto é testemunha da satisfação do paciente

Continuando a vasculhar nos longínquos anos de oitenta e ainda no cumprimento do serviço militar obrigatório, no exercício da especialidade de socorrista na Casa de reclusão de Elvas, recordo alguns “prazeres”.

Como referi anteriormente sempre senti uma certa apetência para a área da saúde. Sentia curiosidade, para além do gosto, sentia que tinha sensibilidade suficiente e necessária para tentar ajudar os outros.

Não lamento, nem me arrependo dos caminhos que a vida me levou, podiam ter sido outros, mas não foram, há que aceitá-los e tirar o maior proveito e prazer deles. Modéstia à parte, acho que, se o meu caminho tem sido o da saúde, daria com toda a certeza, um óptimo enfermeiro.

Embora hajam mais de quarenta anos que não mexa numa compressa, numa seringa e agulha, em desinfectantes etc. para além do trivial do nosso dia-a-dia, de colocar um penso rápido, numa ou outra ferida que façamos, apesar de todo este tempo decorrido, ainda me lembro bem da forma correcta de limpar uma ferida, de como imobilizar correctamente um membro, de como apertar o garrote, especialmente no pescoço, de alguns se necessário, ahahah… de como fixar uma ligadura numa perna, sem que ela caia e sem usar adesivos e se necessário dar uma injecção quer subcutânea quer intravenosa.

Alguns dirão: - “gaba-te cesta que vais à vindima”, pois que seja, o meu auto convencimento vem dos elogios quer dos superiores hierárquicos quer dos camaradas que então prestaram serviço comigo.

O posto de socorros/enfermaria da Casa de Reclusão ficava no claustro interno que, servia de pátio/recreio dos reclusos e que também dava acesso ao Tribunal Militar De Elvas.

Todos nós, em alguma situação de maior desilusão, já dissemos que, a vida de preso é que é boa, não fazemos nada e temos cama, comida e roupa lavada. A verdade é que nenhum de nós, conscientemente, a quer experimentar.

Porque vivi um período da minha vida, directamente com presos, eu não a quero para mim, nem consciente nem inconscientemente. Os “pobres coitados” porque não tinham nada que fazer, entretinham-se a chatear as cabeças dos socorristas, inventando doenças e outros achaques.

Porque eu tinha uma paciência de Job, comparada com a dos outros socorristas, era vê-los a espreitarem o momento em que eu estava de “socorrista de dia”, para me irem pedir tudo e mais alguma coisa. Entenda-se, este “tudo e mais alguma coisa”, eram medicamentos ansiolíticos. 

Estes medicamentos, quer fossem orais quer fossem injectáveis, como é óbvio, só podiam ser ministrados com prescrição médica.

Não é fácil lidar com esta população. Em algumas ocasiões, havia fortes indícios, de alguns comportamentos descambarem em violência.

Narrei muitos desses comportamentos aos médicos, muitos dos que por lá passaram eram aspirantes médicos, sendo um deles, mais permanente, o Dr Melo e Sousa.

Era o único socorrista, incluindo o sargento enfermeiro, que tinha ordem expressa de, sempre que visse uma situação de, “caso mal parado”, injectasse uma ampola de água destilada. Em último recurso, se visse que a situação assim o exigia, ministrasse mesmo o medicamento.  

Mas, o meu “prazer maior” era antes da injecção, mostrar uma agulha de seis centímetros. Uma autêntica bisarma.      

Naquela altura, haviam especialmente dois medicamentos que eram muitos ministrados por via subcutânea.

Um era a mistura de “Ricon e Commel”, acho que eram assim que se chamavam, ambos muito oleosos, o que a tornava muito difícil de ministrar. O outro, à base de penicilina, que antes tínhamos de diluir com uma ampola de água destilada, no respectivo frasco que continha o pó. Por mais que agitássemos o frasco, era dificílimo fazermos uma diluição eficaz, de modo a conseguir-se injectar todo o líquido de uma só vez utilizando uma agulha mais pequena, logo mais fina. Acontecia-me, muitas vezes, ter de espetar mais de uma agulha, para conseguir injectar todo o líquido, o que, para além de poder provocar alguma dor no paciente, era incomodo para mim e para ele.   

Já farto, de tantas vezes ver entrar metade do líquido, enquanto que a outra metade escorria, literalmente, pelas nádegas, ia dizer nalgas, do paciente, decidi aventurar-me, porque constituía um desafio, espetar a dita cuja de seis centímetros.

Então não é, que a dita cuja, entrou até ao ”tutano”. Não, não chegou a entrar no osso, havia muita carne antes…entrou até à parte metálica, ou seja só se via a cabeça da agulha.

Fiquei radiante. Consegui injectar todo o líquido de uma só vez e uma só picada.

O próprio paciente também ficou satisfeito por o ter picado apenas uma vez e não ter sentido nada.

Quando lhe mostrei a agulha, nem queria acreditar, vi jeito de ele desmaiar. Ahahah

A partir daí passou a ser a minha agulha preferida. Para além do prazer que me dava mostrá-la, antes de a espetar, divertia-me imenso ver a cara deles de espanto e temor, ao ponto de alguns, inicialmente se recusarem a que eu a espetasse.

Mas todos tinham de levar com ela…ahahah. Acabaram por gostar e, só queriam que fosse eu a espetá-los…ahahahah