quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Vozes de Burros não chegam ao Céu



 

Sou adaptativo aos locais, às situações e às pessoas. Não fico “agarrado”. Penso que não sou saudosista. Ontem, numa deslocação rápida à minha cidade de Elvas e porque estava próximo, deu-me vontade de calcorrear os espaços que são “tão meus”. A estrada de Santa Rita, as ruas do jardim municipal. Habituei-me a conhecê-lo. Nasci e morei numa das casas que já não existem, onde hoje está uma magnífica moradia, por baixo do lagar de Santa Rita. O conjunto de casas era designado por Santa Rita. O espaço adjacente às casas pega com a quinta do Salvador e com o lagar de Santa Rita. Em frente, ficava a quinta do Bispo, hoje não existente, apenas se mantém a residência do poeta António Sardinha. Não pude evitar ver o ribeiro, hoje não existente, que ladeava e atravessava a estrada de Santa Rita. Vi o tanque rasteiro, de água cristalina, que escorria da cascata da quinta do bispo, onde a minha mãe e irmãs, junto com as outras vizinhas lavavam a roupa, há muitos anos já entaipado, ao mesmo tempo que entaiparam o ribeiro. Vi a roupa a corar ao sol. Vi os acampamentos de ciganos, sempre havia ciganos nas margens do ribeiro. Ah! Não me venham com essa da nova moda da xenofobia e do racismo. Cresci junto com ciganos, com tendeiros, brinquei e briguei com eles e elas, vivíamos juntos. Fomos amigos. Vi-os chegar e partir, raramente estavam mais que uma semana seguida, talvez para darem lugar uns aos outros. Deslocavam-se em carroças puxadas por mulas e machos e deixavam sempre impecavelmente limpo todo o espaço que utilizavam. Eram bons vizinhos. Se para nós eles eram e são ciganos, para eles nós somos "gaios" acho que era este o termo que nos designava, já não me lembro com exactidão. Se alguém souber que o diga não me sinto ofendido por isso.

Vi as manadas, de gado bravo, a subirem a estrada de Santa Rita, com os guias/avisadores à frente e à distância, a avisarem os residentes que a manada estava a chegar, que nos metessemos em casa. Eu espreitava do portão, uma e outra vez, as vacas ou os toiros chegavam-se lá, e apesar do portão estar fechado " oh pernas pra que te quero". Era um espectáculo sempre que uma manada de vacas ou um rebanho de ovelhas enchia aquela estrada, a avenida António Sardinha e as estradas por onde circulavam na deslocação de uma herdade para outra. 

Hoje, ao ver estas imagens sinto alguma nostalgia. Velhice deve ser. Vi os as fontes a jorrar água todo o ano e onde tantas e tantas vezes, fui encher os cântaros de barros e os baldes de zinco. Lembro-me dos baldes de zinco porque mesmo vazios pesavam pra c…

Não me lembro de baldes de plástico. Essa água servia para tudo, para beber, para fazer comida, para os animais, para regar as flores e a pequena horta que fazia. Adorava cavar a terra, semear as alfaces, as couves, as nabiças, os coentros a salsa, os espinafres…para tomar banho, uma vez por semana d’inverno, num enorme alguidar de zinco, ainda hoje o guardo...de verão tomava-se mais vezes, podia-se tomar banho de água fresca e se ela era fresca…. Sim, não havia água canalizada. Vi a minha infância, a adolescência e o jovem adulto. Era feliz e não sabia. Baah! Eu não sou saudosista, mas que bateu saudade, bateu!.   

Mas ia-lhes falar do jardim municipal.

Era um espaço meu também. Atravessava-o para ir para a escola primária. Escola de Santa Luzia, isto quando subia a estrada de Santa Rita. Amiúdes vezes, percorria o muro que separava a quinta do Salvador da minha casa que pegava pela parte de trás com o recreio da escola. Pode-se dizer que vivia na escola. Quase sempre era o primeiro a chegar ao edifício masculino, porque só havia dois, o masculino e o feminino e a cantina. Chegava antes dos contínuos, sim, era assim que eram chamados e por ser o primeiro e levar muito tempo à espera chamavam-me o “galo da madrugada”. Talvez por isso, ainda hoje, detesto chegar atrasado, detesto que esperem por mim e não suporto esperar pelos outros. Não tenho memória de alguma vez ter chegado atrasado onde quer que fosse.

Já me perdi de novo.

Voltemos ao jardim.

Ao bater com os olhos na parede com o gradeamento e os pesados portões, veio-me à memória, consequência de acumular anos, que há muitos e muitos anos, também aqui na cidade de Elvas houve umas “inteligências” que quiseram derrubar toda a “muralha” que circunda o jardim, defendendo que o espaço devia ser de acesso livre. Felizmente houve uns burros, também os há, que se opuseram e ganharam os burros à inteligência. Não pude deixar, de fazer a comparação, com a cidade na qual vivo actualmente, Portalegre. Os burros aqui não são ouvidos. Bom, se calhar têm razão, “vozes de burro não chegam ao céu”. Deve ser por isso que se vive no inferno.

Não fiquei feliz com o estado em que se encontra um espaço que é tão meu, que é tão nosso dos Elvenses.

A câmara do telemóvel filmou as imagens que vos deixo.   

Os meus olhos, da memória naturalmente, viram um jardim impecavelmente limpo. Vi as equipas de jardineiros, dos quais faziam parte o Sr Zé, o meu tio Lourenço, o meu tio Zé, o meu tio João e outros que já me esqueci o nome. Vi-os debruçados sobre os canteiros, canteiros que eram autênticas peças de arte.

Os da minha geração certamente lembram-se, todos os canteiro tinham uma moldura. Eram assim constituídos:

tinham uma moldura de areia, seguida de outra de relva e no centro as flores. Sempre havia flores, próprias de cada estação. Quem não se lembra da rua dos liláses e do seu cheiro inebriante.

O parque infantil, era cercado com uma sebe de bucho e a entrada era paga. Lembro-me dos cinco tostões. Havia um campo de patinagem, sempre cheio, um campo de barcos, as cadeiras de baloiço, a roda com os cavalos o escorrega, as argolas, a barra, o vai-e-vem, não sei se me esqueci de algum…

Hoje o parque infantil não é pago e é o que se vê. Não existe campo de patinagem. Na entrada norte, havia um imenso lago que deu lugar a um campo. O cinema ao ar livre deu, há já muitos anos, lugar aos campos de ténis. Junto à entrada sul onde eram os lavadouros, e que praticamente toda a cidade se deslocava para lavar a roupa, hoje, é o campo desportivo com um anfi-teatro.

Subi ao "pico", já fora do jardim, chamava-se assim porque nos picávamos devidos aos cardos e outras ervas, quando nos sentávamos no chão para ver os filmes de "cóbois" e os filmes melodramáticos indianos, num gigantesco "ecrám" por não queremos pagar bilhete. Mesmo neste local, imperava o respeito e o silêncio quando os filmes iniciavam. 

O gigantesco "ecrám" ficou lá, mesmo depois das alterações. Para memória futura... 

Não tenho nada contra estas alterações/melhorias, porque muitas das antes existente, por força dos modernismos, deixaram de fazer sentido. 

Já quanto ao estado de limpeza e conservação tenho muito a dizer. Os meus olhos, os da memória, nunca viram um jardim tão sujo e não me venham com a desculpa que as folhas caem, sempre caíram e nunca as vi no chão. Os canteiros tinham flores, sempre, em todas as estações. Hoje, as flores que os meus olhos viram foram as “azedas” e as ervas. Nem relva há, apenas erva.

Os lagos sempre tinham água, peixes e patos e eram limpos todas as semanas.

Quem não se lembra da rua das palmeiras? Hoje inexistentes, foi doença, certo, mas não podiam já terem sido substituídas?. O jardim municipal, o espaço que é tão meu, o espaço que é tão nosso, o espaço que é tão bonito merece um cuidado melhor.

O espaço envolvente do palácio da justiça que os meus olhos viram também era cuidado pelos mesmos jardineiros, Hoje, o que os meus olhos viram e a câmara regista para a posteridade é um espaço degradante, cheio de ervas.

Infelizmente, tenho de reconhecer que os espaços do jardim e do palácio da justiça, estão em pior estado de limpeza e conservação, comparados com os parques da corredoura e avenida da liberdade de Portalegre.

Tenho esperança que os burros de hoje, à semelhança dos burros de outrora, exijam a quem de direito, a dignificação de tão emblemáticos espaços numa cidade que é património mundial.

Desafio a quem tiver fotos dos tempos da memória que as publique seria “giro” todos recordarmos.


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