Só começamos a ter
memórias quando deixamos de olhar para o umbigo e começamos a olhar para o
rabo.
Quis fazer uma
metáfora, mas acho que não consegui, como não sou de apagar, sigo em frente, para que não hajam dúvidas,
esclareço o que pretendo dizer, começamos a ter
memórias quando deixamos de olhar para a frente e começamos a olhar para trás.
Já pertenço a esses, que olham mais para trás do que para a frente, daí
permitir-me tê-las e descrevê-las.
Não o faço por vaidade
ou por a minha vida ter sido assim tão importante...ou que seja do interesse dos
outros/colectivo, embora, naturalmente para mim, ela seja o mais importante de
tudo, por isso faço este exercício de ida ao passado, mantendo tanto quanto
possível, os neurónios activos.
Pretendo ao mesmo
tempo, que, vocês que me estão a ler, façam também este exercício. Já todos
ouvimos “muita gente” dizer, “a minha vida dava um filme”. Porque é que é só a
vida dos outros que dá um filme e a nossa não? desafio-os a criarem o vosso
filme e mostrá-lo sem medos nem pudores.
Há quem só tenha,
infelizmente, más memórias da sua passagem por esta vida. Duvido que haja
alguém que só tenha boas memórias. Eu, como penso que será a maioria, tenho más
e boas, embora me concentre nas que considero boas, mesmo que pareçam más aos
olhos de outros.
“Tive a sorte” de ter
sido incorporado no exército, na minha cidade natal, Elvas, no antigo Regimento
de Infantaria de Elvas, no pólo de São Paulo, onde hoje é a Escola Superior Agrária
do Instituto Politécnico de Portalegre, a quatro de Setembro de mil novecentos
e setenta e nove (04/09/1979), terceiro turno.
Lembro-me
perfeitamente, apresentei-me por volta das dezasseis horas, muito perto da hora
limite de apresentação que eram as dezassete horas.
Esta hora e este dia
estão marcados indelevelmente na minha memória, porque a minha mãe ainda
“bastante cedo”, fez questão de me acordar…
- Filho, levanta-te que
está na hora. Tens de te apresentares no quartel.
-
Que horas são? ainda é de noite…
- São oito da manhã,
despacha-te.
- Hummm! Ainda não está
na hora, é muito cedo, tenho o dia todo para me apresentar.
- Deves querer que te
venham buscar. Despacha-te!
Levantei-me como era
meu hábito, às oito exactas.
Engonhei o dia todo.
Foi um misto de sensações e sentimentos.
Sabia que tinha de ir e
queria ir, mas…sentia o tal arrepio na espinha o tremor na barriga, sei lá, o
medo do desconhecido, por isso, atrasei o quanto pude a hora de apresentação.
Era a primeira vez que saia de debaixo da saia da mamã. Sim, fui o “filhinho da
mamã” enquanto ela viveu, talvez por ser o “caga no ninho”. Infelizmente, só me
deu colo, literalmente, até aos vinte e oito, sentava-me muitas vezes no seu colo,
num abraço que só nós dávamos.. Que saudades…desse colo, de nos sentarmos lado
a lado e encostar a minha cabeça no seu ombro. De me sentar num banco mais
baixo e deitar a minha cabeça no seu regaço. Do seu cheiro, do seu olhar
embevecido e também às vezes de tristeza, de repreensão, mas sempre, sempre,
com o imenso amor de mãe.
Pelas quinze e trinta
saí de casa, subi a estrada de Santa Rita, atravessei o jardim municipal e
depois o jardim das laranjeiras, subi a rua da cisterna, passei à frente da
casa de reclusão e finalmente entrei na porta de armas. No percurso a pé,
demorei sensivelmente meia hora Encaminharam-me para uma sala ao cimo da
ligeira rampa onde estava a ser feita a incorporação. Distribuíram-me o
fardamento e encaminharam-me para a caserna. Pelas dezanove horas mandaram-nos
formar na pequena parada e fomos encaminhados por filas de cada um dos pelotões
para o refeitório que ficava mesmo em frente, lamentavelmente já não me lembro
o que foi o jantar, mas deve ter sido alguma feijoada com muito toucinho.… Foi
uma apresentação e incorporação normal,
não guardo nenhum episódio que me tenha “marcado”. Às vinte e duas horas tocou
ao silêncio, é um toque lindo. A partir desta hora, não podia haver luzes
acesas nem barulhos. Dormi nessa noite e durante toda a semana no quartel. Foi
a primeira vez que dormi fora de casa. Chegado o fim-de-semana, pude finalmente
regressar a casa para passar umas escassas horas. Ainda assim, fui um felizardo,
porque em pouco mais de quinze minutos, a pé, estava de novo em casa. Houve
quem tivesse pela frente, muitos quilómetros de comboio ou autocarro, o que
diminuía ainda mais o tempo de permanência em casa.
No dia seguinte pelas
sete horas tocou a alvorada, o que significava que os que não estivessem já
levantados tinham de se levantar, fazer as camas como nos tinha sido explicado
no dia anterior. A primeira formatura era a do pequeno almoço, tomado este, que
consistia numa água preta a que chamavam café, água diluída num pó branco, a
que chamavam leite em pó, mas que sabia bem, eu gostava, ainda gosto do sabor
do leite em pó, um pão com marmelada ou manteiga. Davam-nos quinze minutos para
engolirmos tudo. Para nos levantarmos da mesa tínhamos de pedir autorização ao
oficial de dia, só nos era dada, depois de todos termos terminado Findo este
tempo tínhamos de formar novamente na parada para dar início à instrução
militar.