quarta-feira, 24 de maio de 2023

Pedaços de mim - Casa de Reclusão/Elvas

Bar/Sala - Casa de Reclusão/Elvas

 Como já antes disse, depois de   terminar a recruta e ter   frequentado  a especialização de   Socorrista foi-me proposto   escolher entre o Regimento de   Infantaria e a Casa de Reclusão   com a preferência que me queriam   no Regimento de Infantaria. Não   sei porquê, talvez porque, já naquele tempo era um bocadinho do contra, decidi escolher a Casa de Reclusão, daí a minha colocação nesta Unidade Militar.

Era seu Comandante o “famoso” e conhecido Major Sá, figura incontornável e muito discutida, por aquilo que se dizia à boca fechada, no meio social Elvense, pela sua brutalidade, no tratamento, quer em termos humanos quer em termos militares.

O homem tinha estado na guerra nas ex. colónias ultramarinas. Numa dessas campanhas, se a memória não me falha, penso que na Guiné, perdeu a visão de um dos olhos, para além de outras mazelas, muitas delas grande também, e a mão, já não me recordo muito bem se a direita ou esquerda, mas parece-me ainda ver o coto do antebraço direito a terminar na parte que corresponderia à mão com uma espécie de dois dedos.   

O homem tinha cavalos de sua propriedade particular, nas instalações/casas, pertencentes ao aquartelamento que ficam na frente e na parte exterior. Escusado será dizer que, este digno oficial do exército português tinha como empregados, os próprios militares do aquartelamento, os quais tratava a ferro e fogo.

O que era importante para ele, não eram os militares, eram os cavalos.

Hoje seria acusado de peculato. Nesta altura, estes vícios constituíam um “Status”, pelo que era considerado normal estas regalias e mordomias e ninguém ousava pensar sequer, que aquilo era um “roubo”. Senão, mais de metade, para não dizer todos, dos oficiais das forças armada e forças militarizadas, GNR, GF, Polícia de Segurança Pública e dirigente do funcionalismo público teriam ido cumprir penas de prisão na “minha” Casa de Reclusão. Mas, não! nunca lá vi nenhum! menos ainda, por “tais crimes”.

Ainda estou a ver o “carocha” preto, transportar as refeições dele e da família, para além de o ir apanhar a ele em casa, transportar as filhas e a esposa. Permitam-me a ousadia, as filhas e a esposa, espanhola, para além de muito bonitas eram muito simpáticas, especialmente a filha mais velha era, ainda deve ser, porque a beleza é inata, linda de morrer, acho que, platonicamente, ainda cheguei a apaixonar-me, só que era areia demais para a minha camioneta, com a agravante que nem camioneta tinha, mas não fui o único.

Ela ao invés, ao que se dizia, na caserna, estava apaixonada pelo gajo mais feio, gordo, figura de barril, mas tratava dos cavalos e ajudava-a a montar... naturalmente o cavalo, ou égua, acho que era égua. Bem que se aproveitou a passar as mãos numa tão grande beleza.    

Bom! A verdade é que ainda hoje, infelizmente, assim continuamos. Quem está no poder, continua com as mesmas regalias, mordomias, e alcavalas. E nós, os pagantes, continuamos na mesma, calados que nem ratos e pior ainda, continuamos a pensar que faz parte do “Status”.

Paga Zé!  

Quando comecei este texto, nem sequer tinha pensado, em falar do comandante e do seu “status”. Era para falar sobre os pedaços de mim, pois então, vamos a eles.

Dada a fama de que o comandante Sá gozava na cidade, a minha mãe quando soube que eu iria para a Casa de Reclusão ficou apavorada. Deve ter imaginado que eu iria ser sovado todos os dias e o fim dos meus dias estaria próximo. E não, não estou a exagerar, os do meu tempo e mais velhos lembrar-se-ão desta figura. O homem era temido na cidade. Não sei se ainda é vivo, mas se for, certamente concordará comigo. 

Pessoalmente, não tenho nada que dizer do Comandante Sá, quer em termos de tratamento humano quer em termos de tratamento militar, à parte uma historieta, que se me lembrar conto no próximo texto. 

 

domingo, 21 de maio de 2023

Pedaços de mim - Vida de "Pronto"

 

A formação da especialidade de socorrista foi frequentada no Hospital Militar de Évora, no final de mil novecentos e setenta e nove início de mil novecentos e oitenta, já não sei precisar qual a sua duração. Os que foram militares do “meu tempo” certamente se lembrarão melhor que eu.

O que vos quero contar não tem propriamente a ver com a formação da especialidade, já que esta decorreu normalmente e aprendi o que tinha de aprender.

Terminada a especialidade, fui colocado da Casa de Reclusão de Elvas.

Para esta unidade militar eram enviados os “criminosos militares” para cumprirem penas de prisão, essencialmente composta por desertores do exército. Também havia um ou outro militar da GNR e da ex. guarda fiscal a cumprirem penas de prisão por uma ou outra condenação.

Tenho duas ou três histórias que de alguma forma me “marcaram” e quando digo marcaram é simplesmente porque me ficaram na memória por serem inusitadas e não por nenhum outro motivo mais extraordinário.

Não sei se consigo contá-las num único texto. Não quero que estes sejam demasiado extensos para não vos saturar e ter quase a certeza que leem até ao fim.

Como já disse num texto anterior, tive a sorte, continuo-o a se um “sortudo”, de ter feito a tropa na minha cidade natal. Vantagem de Elvas ter sido uma cidade militar. Hoje é uma sombra do seu passado histórico, mas não é por aí que quero ir, mas sim voltar à minha história. Ah! Só mais um reparo, que isto de escrever ou falar é como as cerejas vêm uma atrás das outras e não é por acaso, estamos mesmo na época delas, mas a um preço astronómico, que só os pássaros as podem comer e de borla…é a minha história e não “estória” que isto de estória faz-me lembrar sempre o papel higiénico…mas adiante.

No primeiro mês de “pronto” e já promovido a primeiro cabo, tinha direito a dormir, e comer no quartel, embora quase sempre fosse dormir e comer a casa. O comer da mamã era outra coisa.

Se a memória não me falha muito, éramos pagos no período da recruta com trezentos escudos por mês (300$00). Para os que eventualmente não sabem o que eram os escudos, era a moeda portuguesas antes da adesão ao euro, o que hoje seriam um euro e meio (1,50 €), tanto dinheiro...

Como primeiro cabo, mas “arranchado”, este palavrão vem de rancho e este significa comer/iguaria, logo com direito a comer e dormir, “ganhava” mil e quinhentos escudo por mês (1500$00) ou um conto e quinhentos, hoje sete euros e meio (7,50 €).

Passados dois ou três meses “desarranchei-me”, depois de perceber que podia fazê-lo, obtendo com isso uma ligeira vantagem monetária e passei a ganhar qualquer coisa como cinco mil e quinhentos escudos (5500$00),  ou cinco contos e quinhentos, hoje vinte e sete euros e meio (27,50 €), o que para a altura, um jovem sem compromisso e que ainda-por-cima comia e dormia à conta dos papás era uma “pequena fortuna”.

Foi especialmente nesta fase que comecei a juntar/guardar dinheiro. Sempre ouvi a minha mãe dizer que grão a grão enche a galinha o papo. E de facto, a minha “galinha” “encheu o papo”, terminei o “tempo obrigatório” com mais de cinquenta contos no papo.

Aos meus pais, o meu eterno agradecimento por me terem permitido fazer este “pé de meia”.

As histórias deste tempo virão no próximo “pedaços de mim”.     

Assim espero!


domingo, 14 de maio de 2023

Pedaços de mim - Instrução Militar/Vida de Recruta (II)

A partir desta publicação, o título destas crónicas passa a chamar-se "Pedaços de mim" 

No decorrer da instrução militar, ainda durante a recruta, e de acordo com as aptidões que cada um vinha demonstrando éramos seleccionados para mais tarde frequentarmos as especializações, dentro da arma de infantaria.

Talvez porque o comandante de pelotão, aspirante miliciano Prezado, era apontador de morteiro, e porque esta especialidade requeria conhecimentos de matemática e geometria, queria que eu fosse para esta especialidade.

Acontece que em mil novecentos e setenta e seis, tinha eu dezassete anos, o mais novo do curso, os outros eram já pessoas “bastante” adultas, por minha iniciativa e vontade, frequentei durante uns meses, não sei precisar quantos, um curso de primeiros socorros ministrado pela Cruz Vermelha Portuguesa – Centro Técnico de Socorrismo. Curso que adorei, talvez porque, durante a frequência do mesmo, modéstia à parte, era bastante elogiado pelos instrutores e inclusive pelos próprios colegas, o que me motivava ainda mais a esmerar na técnica e no conhecimento em geral.  

Quando fui à inspecção militar em Évora, “tirar as sortes” era assim que se designava, em mil novecentos e setenta e oito, foi-nos entregue um formulário que tínhamos de preencher, quase tipo “curriculum vitae”. Nesse questionário/inquérito mencionei que tinha um curso de primeiros socorros. O resultado da inspecção militar foi, naturalmente, “Apto para todo o serviço militar”. Ou seja, a “sorte” era que teria de ser “tropa”.

Voltemos à recruta. Apesar de já estar “sentenciado” pelo comandante de pelotão que iria ser apontador de morteiro, tal não veio a acontecer.

O primeiro sargento enfermeiro Ramos? que era enfermeiro no quartel de São Paulo em Elvas, também queria puxar a “brasa à sua sardinha” o mesmo é dizer à sua especialidade “Socorrista”, vai daí, consulta as fichas individuais de cada um e descobre que eu já tinha a “especialização”.

A enfermaria/posto de socorros do quartel ficava numa das portas exteriores laterais, à porta d’armas com acesso directo da rua.

Num dia, quando o pelotão em marcha, passava em frente à porta, o primeiro sargento enfermeiro dirigiu-se ao comandante de pelotão.

- Meu aspirante, só um minuto, preciso falar consigo.

O aspirante olhou-o de alto a baixo, imagino eu, a pensar como é que um primeiro sargento se atrevia a interrompê-lo em plena instrução. Não deu ordem de “alto” mas dirigiu-se para mais perto do primeiro sargento.

Soube mais tarde, nesse mesmo dia, no fim do período da instrução que me devia dirigir ao posto de socorros.

Fiquei atónito e com medo, o que se passava? para ter de ir ao posto de socorros, já que eu não me tinha queixado de nada.

Conforme a ordem recebida dirigi-me ao posto de socorros. O primeiro sargento afável e simpático perguntou-me

- Tem algum conhecimento de primeiros socorros?

Eu com alguma vaidade, respondi,

- Sim tenho, frequentei um curso na cruz vermelha.

- Então, você é a pessoa indicada para vir para a especialidade de socorrista.

- Acho que não, o “nosso” aspirante já me disse que ia para apontador de morteiro.

- Deixe isso comigo, você não quer ser socorrista na tropa?

- Não me importava.

Quem não ficou satisfeito com esta proposta foi o aspirante, mas eu não era visto nem achado no assunto, nada fiz, nem sabia se podia ou não fazer, para ir para uma ou outra especialidade. Fui apanhado no meio.

Passados mais uns dias, o primeiro sargento pede novamente que eu e mais três camaradas fossemos ao posto de socorros.  

Tinha uma surpresa para nós. Fez dois pares, para “testar” as nossas eventuais aptidões para uma eventual especialidade de socorrista, não se contentou com menos, cada um de nós, teria de dar ao outro, na nádega, uma injecção subcutânea de água destilada.  

O nosso pavor reflectiu-se de imediato nas nossas faces, não sei se ficámos brancos, se pretos, se vermelhos, mas que o pavor se via, se sentia, e se cheirava isso era inegável. Nenhum de nós, até então, tinha mexido numa seringa e numa agulha, menos ainda espetá-la, literalmente, no cu do outro…

Não é para me gabar, para infortúnio meu, fui o único que espetou a agulha à primeira. O difícil foi acertar o buraco da seringa com o buraco da agulha, tremia por tudo que era lado, de lembrar que nenhum deste material era descartável. Houve água destilada com fartura, a escorrer pelo rabo e pernas de cada um. Os nossos rabos viraram “passadores” das vezes que foram espetados.

Terminada a recruta, apresentei-me no Hospital Militar de Évora para frequentar o curso na especialidade de socorrista com vista à promoção a primeiro cabo.   


 Antes de terminar o fim do prazo, fiz a reciclagem 

 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Memórias do Cota - Instrução militar/Vida de Recruta

 

Sou o segundo a contar da direita

Após o dia da incorporação, no dia seguinte, cinco de Setembro de mil novecentos e setenta e nove, pelas 07h30, depois de tomado o pequeno almoço, já o descrevi na página anterior, teve início a instrução militar.

Pertencia ao 4º pelotão com o número 648, a partir deste dia deixámos de ter nome e éramos chamados e conhecidos pelos respectivos números.

Ainda tenho, mais ou menos, relativa boa memória, mas sempre senti dificuldade em “guardar” nomes das pessoas por muito tempo. Infelizmente, não me lembro do nome de nenhum camarada que comigo compartilhou esta vivência. Talvez porque sempre fomos um número… sei lá.  

Ao invés, penso ainda recordar o nome do comandante de pelotão, aspirante miliciano Prezado, natural de Estremoz, quanto ao furriel e ao cabo, por mais voltas que dê neste “disco rígido”, não encontro nada, apagou-se por completo, azar…ainda não havia a tal “nuvem” que guarda tudo. Mas, tenho memória de terem sidos excelentes seres humanos, exigiam o que tinham de exigir, naturalmente também porque exigiam deles, mas sempre “dentro dos limites”.

A instrução militar, como o próprio nome indica, tinha a ver com a vida de um futuro militar. Ordem Unida, marchar muito, marchava-se em passo de corrida para tudo e para nada. Quedas na máscara, consistia em se ir em formação de ataque, composta por uma secção, que são duas esquadras no total de onze homens, e reforço homens, porque naquela altura, ainda não havia mulheres no exército. Hoje serão onze militares ou onze pessoas de género indefinido? armamento, tínhamos de conhecer as armas e o seu funcionamento, a famosa G3,  e outras, desmontar, limpar e voltar a montar. Tiro efectuado na carreira de tiro do Falcato. Será que esta carreira de tiro ainda existe? Educação física, toda e mais alguma…legislação como o RDM – Regulamento Disciplinar Militar e CJM - Código de justiça militar. As unidades e regiões militares existentes, ah! naturalmente os postos (graduações) militares, primeiros socorros, enfim uma panóplia de coisa que tinamos de saber.

Quase no final da instrução que durava mais ou menos três meses de “vida dura” vinha a tão “desejada” semana de campo.  

Consistia esta “semana de campo” na ida para o campo, num imaginário “teatro de guerra”. Felizmente para todos nós a guerra nas ex. colónias ultramarinas já tinha terminado. Havia sempre um inimigo que invadia Portugal, se a memória não me falha eram sempre os espanhóis. Resquícios e medos do passado. Naturalmente ganhávamos sempre, ou seja os espanhóis continuavam a ser derrotados…pudera…eles nem apareciam…uns pelotões faziam de inimigo e outros de patriotas e assim se “brincava” às guerras.

Mas nisto somos bons, enganarmo-nos a nós próprios e pior ainda, deixarmo-nos enganar. Acreditar que ganhamos sempre, mas quem ganha são os outros, os que nos manipulam…no ainda hoje “teatro político”. Podemos continuar com manifestações, comissões de inquéritos parlamentares, demissões ou exonerações fictícias, que tudo isto não passa por ser apenas, “uma semana de campo”. Só que neste caso quem treina, brinca, são eles, políticos que, a cada dia estão mais espertos.

Ainda me lembro, a minha semana de campo foi invernosa. Choveu de dia e de noite. Andámos sempre ensopados. Dormíamos três recrutas, numa tenda que armávamos com três panos de tenda, tipo índio. Na “minha tenda” em vez de dormirmos três dormíamos quatro, talvez por eu ser tão magro que não ocupava espaço… O motivo foi outro, depois conto.

Não guardo má memória deste lapso de tempo da minha vida, para ser sincero, “até gostei”.